Escrito à meia-noite #08 - A terra se lembrará
Quando criança, eu tinha um enorme fascínio por arqueologia, o que provavelmente é uma verdade para várias crianças que cresceram assistindo a As Aventuras de Jackie Chan, Caçadora de Relíquias e Indiana Jones. E, assim como muitas outras crianças, eu também tive uma fase de obsessão com dinossauros (que nunca foi realmente embora). Porém, diferente da maioria das crianças, isso também trouxe um fascínio por paleontologia, o que provavelmente ocorreu porque minha tia me emprestou uma coletânea de livros sobre o assunto.
E, não satisfeita, eu ainda fazia questão de ler os livros e mostrar todas as ilustrações de fósseis de artrópodes marinhos para os meus priminhos mais novos. Lia para eles com toda a empolgação de uma criança que lê contos de fadas ou quadrinhos da Turma da Mônica.
Meu ponto é: saber que a terra guarda memórias não era um conceito estranho para mim. Mas foi preciso eu fazer o curso "Fantasmas da América Latina: ficção e política como histórias de horror” (da APPH) para descobrir a profundidade dos segredos que a terra guarda sobre nós. Os “esqueletos no armário" da história humana estão sob camadas e camadas de terra.
Os seres humanos, apesar de pequenos em tamanho, são grandiosos nas marcas que deixam pelo mundo. Essa grandeza vai das pirâmides maias e egípcias ao buraco na camada de ozônio. Não ficamos satisfeitos se não deixarmos nossa marca e, infelizmente, o rastro de destruição é a principal pegada que fica.
Durante esse curso, fomos descobrindo diversos rastros de um tipo específico de destruição: de nós contra nós mesmos. Genocídio indígena, escravidão, desaparecidos políticos das ditaduras, guerras, violência policial. A humanidade parece sempre obrigar a terra a se tornar testemunha dos seus piores crimes.
Há umas semanas, eu fui visitar o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, na cidade do Rio de Janeiro, e toda a discussão feita naquele curso voltou à tona na minha cabeça. O instituto fica sobre o Cemitério dos Pretos Novos, um termo usado para designar as pessoas escravizadas recém trazidas da África que morriam assim que chegavam aos portos brasileiros ou logo antes de serem vendidos. Seja logo ao chegarem ou após anos de servidão compulsória, pisar em solo brasileiro era uma sentença de morte.
Além do cemitério, onde fica o Instituto, eles também fornecem uma aula-passeio chamada de “Circuito Histórico de Herança Africana”. Essa caminhada na região portuária do Rio acompanha o trajeto que era feito por esses pretos novos, desde sua chegada pelo cais, a praça onde eram comercializados e até o “cemitério”, onde seus corpos eram despejados.
Coloquei “cemitério” entre aspas porque o local não passava de uma vala. Um local onde se desfaziam dos corpos daquelas pessoas como mercadoria estragada que não tem mais serventia. Nunca foi feita sequer uma lápide para os sessenta mil corpos estimados de terem sido jogados ali. Não havia sequer registro de onde ficava esse cemitério, que foi descoberto ao acaso. Por anos, não conseguiram encontrar um esqueleto inteiro, porque a vala tinha um espaço limitado e a rotatividade de corpos era enorme, então a teoria é de que precisavam desmembrar os corpos que já estavam lá dentro para fazer caber os novos.
O instituto também tem registro de alguns dos navios escravagistas, dos seus trajetos de navegação, o país que pertenciam e quantas pessoas foram forçadamente embarcadas neles. Outro dado disponível é o número de pessoas que chegaram até o Brasil, um número que nunca é igual ao número de embarcados. Informação que, sem querer, torna o oceano Atlântico um cumplíce em acobertar um dos piores crimes da humanidade, com milhares de corpos que jamais serão recuperados.
Essa impossibilidade de luto e de velar pelos seus mortos é uma temática recorrente nesses crimes arquivados pela terra (e pelo oceano), funcionam quase como um varrer para debaixo do tapete, tentando fingir que essas violências não aconteceram e essas pessoas nunca existiram.
E, quando esses corpos vêm à tona, dão a sensação de que a terra cansou-se de os esconder e está nos enviando uma mensagem, um aviso para que não cometamos os mesmos erros, para termos cuidado com o que fazemos, porque ela sempre se lembrará.
Se você estiver dando um passeio pela cidade do Rio de Janeiro, recomendo visitar o Instituto ou fazer o circuito (que eu não consegui fazer!). Se não tiver como visitar o Rio, você também pode dar uma olhada no acervo deles pelo site.
Alguns segredos que a terra trouxe à tona:
O livro Cometerra de Dolores Reyes, sobre uma menina clarividente que, ao comer terra, consegue saber os horrores que uma pessoa experienciou naquele local.
Uma reportagem sobre a descoberta da Vala de Perus, onde foram encontrados diversas ossadas de desaparecidos políticos da ditadura militar brasileira.
O André Araujo foi um dos responsáveis por ministrar o curso “Fantasmas da América Latina” e na newsletter dele ele deu uma boa introdução ao que discutimos no curso.
Uma reportagem sobre as pessoas com COVID-19 enterradas em valas comuns durante a pior fase de uma pandemia que ainda não acabou.
Novidades:
Uma mudança brusca de assunto para dizer que saiu um novo mini-conto meu na Faísca, chamado Ossos do ofício, e um outro foi aceito na revista Pulpa (ainda sem previsão de lançamento, mas já assinem a news da revista que dá para receber muitos textos excelentes)!
Algo a acrescentar? Algum pitaco para dar? Erros gramaticais imperdoáveis? Basta responder a este e-mail ou me encontrar lá no twitter (enquanto ele durar)!
Aqui você pode encontrar outras coisas que já publiquei por aí.
Até a próxima edição!
J. Venegas Álvares
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